Agraciada com o Prêmio Nansen 2024 da ONU, irmã Rosita afirmou que a dedicação aos refugiados é missão confiada por Deus

Nesta quarta-feira, 9 de outubro, foi oficialmente anunciado que a irmã Rosita Milesi, religiosa Scalabriniana e diretora do Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH), foi a escolhida para receber o Prêmio Nansen 2024, concedido pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR). O prêmio será entregue em uma cerimônia no dia 14 de outubro, em Genebra, na Suíça.

“Ir. Rosita colaborou por diversos anos o Centro Cultural Missionário junto ao Serviço de Colaboração Apostólica Internacional, especialmente no atendimento dos missionários estrangeiros recém chegados ao Brasil que necessitavam de auxílio no encaminhamento de documentações para permanência no País.”

Na entrevista abaixo, a religiosa atribui o serviço de mais de 40 anos dedicados ao trabalho com migrantes e refugiados como algo que sempre entendeu como um chamado de Deus e que orientou sua missão dentro de sua congregação e na Igreja.

O Prêmio Nansen, considerado uma espécie de Nobel da ONU ao trabalho com refugiados, é dedicado ao reconhecimento do trabalho de instituições e pessoas que atuaram pelo resgate e atendimento de refugiados pelo mundo e já teve vencedores como Angela Merkel e Eleonor Roosevelt.

A Acnur ao conceder a honraria aponta o seu trabalho como advogada e sua luta pela dignidade de refugiados e imigrantes. Desde 2017, seu trabalho na fronteira entre o Brasil e a Venezuela passou a ser uma referência para a ONU. A irmã Rosita é apenas a segunda brasileira a ser escolhida, entre mais de 400 nomes considerados para o prêmio. Em 1985, dom Paulo Evaristo Arns também recebeu a homenagem.

Casa Bom Samaritano

A religiosa está à frente também de um projeto de acolhida “Casa Bom Samaritano”, inaugurada em fevereiro de 2021,  cujo papel é acolher migrantes e refugiados venezuelanos que estão na condição de abrigados em Boa Vista (RR) e que serão interiorizados a partir de oportunidades de trabalho na região do Distrito Federal.

A iniciativa faz parte do projeto “Acolhidos por meio do trabalho”, implementado pela AVSI Brasil e Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH)/Irmãs Scalabrinianas e financiado pelo Departamento de População, Refugiados e Migração (PRM), do governo dos EUA, para fortalecer as ações da força tarefa humanitária Operação Acolhida, liderada pelo governo federal.

O espaço está localizado na região do Lago Sul em um imóvel cedido pela Conferência Nacional de Bispos do Brasil (CNBB) ao projeto.

De 2021 até hoje, o projeto já acolheu mais de 170 famílias, totalizando pouco mais de 570 pessoas. A parceria da CNBB com a Avsi Brasil e o Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH) na acolhida a migrantes venezuelanos vai se estender até setembro de 2025.

Abaixo, a o Portal da CNBB publica a íntegra de uma entrevista com a religiosa. Ela fala de sua trajetória, sua jornada junto às irmãs Missionárias Scalabrinianas, sua formação em direito e o trabalho com migrantes e refugiados.

Conte-nos sobre sua infância, suas experiências e valores enquanto crescia e como eles moldaram quem você é hoje.

Nasci em 20 de janeiro de 1945, numa região rural do município de Farroupilha (RS). Somos 12 irmãos e irmãs. Eu sou a sexta. Sempre fui muito decidida e persistente em minhas pretensões e sabia bem me defender quando alguém tivesse qualquer atitude que eu não gostasse. Na família falávamos o dialeto italiano, meu primeiro idioma. Só fui aprender português quando comecei a frequentar a escola, aos 6 anos de idade.

Minha família era muito religiosa, lembro de ouvir meu pai, de manhã bem cedo antes de clarear o dia, indo tratar os animais e rezando em voz alta as orações da manhã. E na casa, ninguém ia dormir, à noite, antes de rezarmos o rosário em família. Este foi um grande valor que incorporei profundamente em minha vida. E o sigo até hoje.

Outro valor que aprendi desde cedo é o trabalho. Meu pai, minha mãe, meus irmãos trabalhavam no campo desde antes do sol nascer até depois do sol posto. E quando havia muito que fazer, muitas vezes iam para o campo a trabalhar sob a luz da lua.

E um terceiro valor que aprendi e que procuro honrar é a generosidade. Minha mãe era muito generosa para com os “moradores de rua”, que à época eram os “sem teto” que viviam pelas estradas, andando em busca de comida e de algum lugar para dormir. Meu também estava sempre disponível para ajudar, dar trabalho, apoiar na doença estes “sem teto” e em geral sem família.

Aos 9 anos de idade tive que deixar a família e fui morar com as Irmãs Scalabrinianas para poder estudar, com a intenção de “ser Irmã”, isto é, de seguir o caminho da vida religiosa consagrada. Sentia falta da família, mas se quisesse estudar, havia que aceitar estar longe dela. Sempre fui bem no estudo. Rapidamente conclui o ensino ginasial e aos 15 anos decidi entrar para o noviciado para a etapa formativa especifica na Congregação das Irmãs Scalabrinianas.

“Minha família era muito religiosa, lembro de ouvir meu pai, de manhã bem cedo antes de clarear o dia, indo tratar os animais e rezando em voz alta as orações da manhã. E na casa, ninguém ia dormir, à noite, antes de rezarmos o rosário em família. Este foi um grande valor que incorporei profundamente em minha vida. E o sigo até hoje”.

Irmã Rosita com colaboradores da Casa Bom Samaritano. | Foto: Ascom CNBB.

Descreva a jornada que a levou a se juntar às Irmãs Missionárias Scalabrinianas. Como a missão delas de ajudar refugiados e migrantes ressoou em você e quais experiências você ganhou trabalhando com pessoas forçadas a fugir?

Minha irmã maior foi morar com as religiosas, pois disse aos pais que queria ser Irmã. Dois anos depois, quando conclui a 4ª série, não havia como continuar os estudos lá no campo. Quando eu conheci a Congregação das Irmãs Scalabrinianas elas não se dedicavam às migrações… As áreas de atuação eram educação e saúde. Eu me dediquei à educação e atuei nesta área durante 10 anos. Depois a congregação me pediu para integrar uma equipe que se dedicava à construção de um grande Hospital em Porto Alegre.

No final dos anos 70, a Congregação decidiu retomar sua missão específica de atenção e serviço evangélico aos migrantes e refugiados. Pouco a pouco, fomos ampliando nossa missão nesta área. Em 1986, a Superiora Geral da Congregação me chamou para ir a Roma, estudar e me preparar com a finalidade específica de implementar um Centro de Estudos Migratórios. Aceitei. Estive e Roma de setembro de 1986 a maio de 1988. Neste período minha dedicação foi total ao tema, pensando na missão junto e a favor dos migrantes e refugiados.

O que a inspirou a começar a estudar direito e levar seu trabalho em uma direção voltada aos direitos humanos? Houve um momento ou fato em particular que a ajudou a decidir que era isso que você queria fazer?

Era o início dos anos 70. Eu trabalhava numa Escola, na cidade de São Jerônimo, interior do RS. Não todas as Irmãs tinham oportunidade de estudar. Era preciso trabalhar. Esta era a posição congregacional. Apenas algumas pessoas eram selecionadas para estudar. Mas eu desejava cursar a Faculdade e tinha em minha mente cursar direito. Vários professores haviam comentado que eu tinha um perfil adequado para esta formação e atuação. Mas, na Congregação ninguém antes, ao longo a história, havia cursado Direito. E o entendimento era de que, com este curso eu não teria o que fazer na Congregação.

Contudo, esta era a oportunidade que eu havia encontrado, mesmo que fosse com certo desencontro com as perspectivas de minhas superioras. Iniciei o curso, por minha conta e risco, estudando à noite, pois durante o dia devia trabalhar na Escola. Após as 17 horas, viajava durante 2 horas, para chegar à Universidade do Vale dos Sinos (Unisinos).

Descreva seu papel no estabelecimento do Centro de Estudos de Migração e do Instituto de Migração e Direitos Humanos e sua importância para refugiados e migrantes.

A Superiora Geral a Congregação me atribuiu a responsabilidade de implementar o Centro de Estudos Migratórios da Congregação. Assim, em março de 1988, o Governo Geral publicou o decreto de criação do Centro e me destinou a vir a Brasília para esta viabilização. Tive, pois, esta missão prática. Retornei ao Brasil no início de maio de 1988 e no dia 6 de junho me desloquei para Brasília. A missão foi difícil, mas não impossível. Viabilizei a implementação do CSEM, no qual trabalhei por 17 anos.

Ao constitui-lo, criei o Departamento de Direito e Cidadania, especificamente para atendimento aos migrantes e refugiados que necessitassem de apoio para a questão documental e jurídica. Com o passar do tempo, este serviço se tornou muito grande e foi necessário criar uma instituição específica para este foi. Foi ali que decidi procurar ajuda e amigos para criar o Instituto Migrações e Direitos Humanos (inicialmente ISMI e logo em seguida adotou-se a denominação IMDH)

Por que foi importante para você defender mudanças na lei no Brasil em relação aos refugiados? Que diferença essas mudanças fizeram na vida de refugiados em relação à legislação anterior?

Ocorre que o Brasil nunca havia adotado uma lei nacional sobre o tema dos refugiados. Adotava a Convenção de Genebra de 1951 e a apreciação dos pedidos de refúgio era feita pelo ACNUR, que apenas submetia os nomes e a decisão ao Ministério da Justiça.

O ACNUR, em 1995, passou a desenvolver atividades para elaborar pautas que poderiam servir para os países da região adotarem uma lei de refugiados, bem como criar um órgão encarregado desta temática. Ademais, ACNUR já planejava fechar o escritório no Brasil, pois a chegada de potenciais refugiadas era muito reduzida. Mas, não queria se afastar do País, sem deixar uma legislação e um órgão, isto é, uma estrutura básica para garantir o atendimento a quem buscasse proteção no Brasil.

Eu já estava envolvida com o tema, pois havia colaborado nos anos anteriores com a acolhida aos angolanos e também havia colaborado com a iniciativa de levantar a cláusula da reserva geográfica no Brasil, alvo que alcançamos em 1989.

Eu já vivia com grande convicção o tema dos refugiados e a defesa de sua acolhida e proteção. Soma-se a isto também a Conferência de Viena sobre Direitos Humanos (1993) e o governo brasileiro quis implementar com certa rapidez o I Plano nacional da Direitos Humanos, o qual foi lançado também no dia 13 de maio de 1996, junto com o encaminhamento ao Congresso do anteprojeto de lei sobre o estatuto dos refugiados.

Neste contexto em que eu estava muito envolvida, não foi difícil incorporar profundamente a proposta da primeira lei de refugiados do Brasil, em todo o seu conteúdo e enfrentar todos os desafios, buscando sua aprovação.

Há algum indivíduo específico — refugiados ou outros — que inspirou seu trabalho ou teve um impacto duradouro em você?

A maior inspiração vem do histórico de nossa Congregação, do fundador Scalabrini  e de seus co-fundadores madre Assunta e padre Marchetti. Uma vez que havia decidido pertencer à Congregação das Scalabrinianas, a opção e o rumo da minha vida seria a fidelidade, o empenho para corresponder àquilo que sempre entendi como um chamado de Deus.

Quais qualidades ou características pessoais são mais valiosas para ter sucesso no trabalho que você faz?

Compromisso com a causa ou trabalho que assumo. Nada me abate diante disto;
Fé em Deus e a convicção de que esta é a missão que Deus me deu.
Resiliência;
Buscar sempre uma solução para qualquer dificuldade, sendo transparente e buscar dialogar, sem renunciar ao fim principal.

Quais foram alguns dos maiores desafios que você enfrentou em sua vida e trabalho, e o que você aprendeu com eles?

Por princípio, eu sempre acredito que enfrentar uma dificuldade, grande ou pequena, ou um desafio, ou mesmo passar por uma experiência negativa, por um fracasso, tudo isto é aprendizado. Quando saímos de uma situação difícil, complexa ou mesmo frustrante, somos mais fortes do que o momento em que tivemos que enfrentar aquele desafio.
Grandes desafios que enfrentei:
– trabalhar na construção de um hospital, área na qual eu não tinha experiência e tampouco havia passado por qualquer mínima situação de doença.
– Prestar assistência a estrangeiros presos, ver as difíceis situações em que se encontravam e respeitar ou encontrar uma solução viável, minimamente razoável, frente às duras regras de assistência num cárcere, local de sofrimentos e de serias violações de direitos…

9) Que lições você pode compartilhar do seu trabalho com governos e outras instituições sobre a melhor forma de defender os direitos e interesses dos refugiados?

Optar sempre pela busca de soluções dialogadas, envolvendo os atores que têm responsabilidade ou atuação na causa;

Levar aos órgãos públicos e outras instituições participantes em qualquer causa argumentos claros, transparentes sobre a dimensão positiva, humana, humanitária que o tema envolve;

Partir do princípio da dignidade que todas as pessoas são portadoras, independentemente do local de nascimento, da cor, e da posição social ou econômica.

O Brasil é conhecido por suas políticas e atitudes inclusivas em relação aos refugiados. Quais você acredita serem as principais razões para isso e como você encorajaria outros países a adotar uma abordagem semelhante?

É uma raridade no contexto internacional uma fala como a do Brasil.

Com certeza o diálogo entre poder público e sociedade civil foi algo constante nestes anos.

As legislações são de vanguarda e garantistas, mas a implementação ainda está distante. O discurso é de garantia, mas existe ainda bastante precariedade, provisoriamente.

Que outras mudanças você gostaria de ver no Brasil e além em termos de políticas e atitudes em relação aos refugiados e como elas podem ser melhor alcançadas?

A legislação é um ponto importante, pois sem esta base a ação fica prejudicada. Existe uma legislação garantista, mas as instituições ainda operam numa lógica anterior (por exemplo o visto humanitário para afegãos, política migratória…). As instituições ainda não operam para concretizar os princípios das normas.

 O que lhe dá mais satisfação no seu trabalho e por quê?

Ver as pessoas refugiadas em condições de retomar uma trajetória de vida em segurança e com o apoio necessário para viver em condições de dignidade humana.

O que você aprendeu sobre si mesma e outras pessoas ao longo de sua vida e trabalho?

Ser mais compreensiva com as pessoas que colaboram em nossas atividades e a quem se dedica a esta causa humanitária de acolher, apoiar e integrar refugiados;

Escutar um pouco mais do que falar, pois isto nunca foi uma característica minha;
Tentar entender e solidarizar-me com a complexidade do drama que vive uma pessoa refugiada.

Creio que aprendi um pouco a ter consideração e não julgar as pessoas por suas falhas e eventuais erros.

Como você mantém sua energia e motivação e o que você faz para relaxar?

Não sei muito explicar a energia que tenho. Atribuo muito à semelhança com minha mãe. Era uma mulher forte, generosa, muito decidida, que não se deixava abater por nada. O meu “relaxar” é cuidar das plantas, das flores e dar comida e água aos passarinhos (que vivem livres, mas estão acostumados a vir comer em locais onde colocamos alimentação… não tenho pássaros presos).

Este ano comemoramos 40 anos da Declaração de Cartagena, você tem trabalhado para pessoas deslocadas todo esse tempo, como você acha que a declaração e os compromissos dos países com a declaração fizeram a diferença em seu trabalho?

A Declaração de Cartagena com certeza foi importante na ampliação normativa da proteção internacional dos direitos humanos dos refugiados. No caso da migração venezuelana e outras migrações se tornou uma importante via de acesso à documentação quando as pessoas não se consideravam simplesmente “migrantes”. Numa palavra é um importante instrumento normativo diante de fluxos mistos e a crescente complexidade do fenômeno migratório e de suas causas.

Estamos vendo deslocamentos por causa das mudanças climáticas e desastres. Como especialista em assistência e proteção a refugiados, você poderia nos contar como as mudanças climáticas estão mudando seu trabalho e a vida das pessoas para quem você trabalha? Você tem algum conselho para os governos sobre como abordar esses novos desafios?

Os deslocamentos decorrentes das mudanças climáticas estão aumentando sempre mais. Fiquei impactado por alguns nigerianos que vieram para o Brasil por esta causa. Eram homens. E do outro lado estavam extremamente preocupados com as esposas que se encontravam na Nigeria, necessitando de apoio porque a seca não deixava sobreviver. Acredito que são importantes respostas que considerem os núcleos familiares que não conseguiram se deslocar. Por exemplo criando canais para que as remessas possam chegar com menor taxas.

Conheça mais sobre a vida da religiosa em vídeo produzido pela Acnur/ONU:

Por Willian Bonfim com informações da Acnur e da irmã Rosita Milesi

Fonte: cnbb.com.br

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